terça-feira, 4 de outubro de 2011

4 de outubro é dia de São Francisco de Assis e dia dos Animais



Ouçam nossa voz
Texto de Ana Lúcia Leão, publicado no site Tribuna Animal

Em 1182, na Itália, nascia um menino, herdeiro de fortuna. Mais tarde, já homem, abdicou de sua riqueza e abraçou a pobreza. Mas não a pobreza de espírito. Gozasse de sua herança, seria apenas mais um nome perdido na História. Porém, oito séculos depois, ele foi escolhido a personalidade do milênio. E no mundo inteiro, hoje, no 4 de outubro, é comemorado o seu dia.
Francisco de Assis tinha, além do despojamento, a notável capacidade de atentar para o muitas vezes ignorado e captar as mensagens daqueles que ele chamava de irmãos. Irmãos de todas as espécies: a dos irmãos iguais e as dos irmãos diferentes. E os irmãos diferentes de Francisco, são igualmente homenageados com ele nesta data.
Francisco de Assis abriu uma picada a golpes de amor que nós, os protetores de animais - tantas vezes menosprezados - insistimos nela prosseguir. É que o dom da empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro, de traduzir intimamente as sensações de quem nos é diverso, é um privilégio e um fardo. Poucos recebem esse dom e, em número menor ainda, os que aceitam assumi-lo, porque ele tem a leveza do elefante.
Durante séculos seguimos a picada aberta por Francisco à velocidade do jabuti. Em anos mais recentes atingimos algumas clareiras onde repousar por breves instantes. Mas tão logo recobramos fôlego e energia, vozes – inaudíveis para a maioria – alcançam nossos ouvidos e nos intimam a continuar. Elas miam por respeito, elas chilreiam por liberdade, elas mugem de pavor, ganem de dor. São vozes demais dos abatedouros pra fazermos ressoar nas cidades; milhares de mensagens, as quais temos que divulgar, censuradas por focinheiras nos laboratórios. São saudades inúmeras da selva que devemos fazer ecoar para além das jaulas; é o relincho debilitado, que nos cabe amplificar, dos que transportam carga acima das próprias forças e debaixo do chicote.
A ausência de empatia ensurdece o humano pra qualquer lamento que não seja o próprio. Ele se lamuria do cansaço ao final do dia, da pensão no fim da vida; se o jumento adoece, que entoe o zurro à distância. O cão guarda a casa; quando velho, que vá ganir em dueto com o jumento na desvalia. O homem abre corpos na ânsia de compreender os mecanismos da vida, mas ignora o guincho de dor da cobaia submetida à cânula e ao bisturi.
O ser humano convenientemente esquece a expressão de simpatia das outras espécies: o roçar do pêlo do gato em suas pernas, quando ele chorou o descarte do desemprego; o abanar da cauda do seu cão, quando os amigos de juventude já se foram; o empurrão amigo do golfinho quando se afogava. O animal irracionalmente ama aquele que o subestima.
O utilitarismo impede que o Rei da Natureza ouça as vozes que lhe chegam do elo mais fraco da corrente dos desvalidos. O chimpanzé é seu bobo da corte e fonte de riso; acabada a função circense, que chore na jaula pelo crime não cometido. O rei se apropriou da eletricidade, escamoteou a diferença entre a noite e o dia; dos pássaros que alardeiam o despontar do sol, ele confisca as cores e privatiza o canto na gaiola, enquanto reivindica para si o direito de ir e vir. Outras aves, ele amontoa na granja sob o sol artificial de um dia perene: ali, elas envelhecem dois anos em dois meses pra que mais depressa calem os bicos e satisfaçam o soberano na gula de cada dia. O rei autoproclamado subverte as leis do seu reino, gerando o golpe dos males que devastam sua criação e contaminam sua corte. Então seus escravos conhecem o lado ainda mais impiedoso deste rei: a megaimolação, os megasepultamentos das vítimas ainda gementes. Nega-se a ouvir os pios e mugidos e não apreende o manifesto de revolta da natureza.
O imediatismo e a ambição, se ensurdecem o Rei da Natureza, também o cegam: as matas, pinta de cinza; o mar, de negro; os rios, decora com estranhíssimos objetos. Na sua ânsia de tudo alterar a seu bel prazer - trocando as curvas naturais pelo caminho mais curto das retas - apaga vidas, aniquila espécies, aplaina texturas ancestrais. E vai perdendo a memória da obra original.
O animal racional compõe as sinfonias e faz estrondar as bombas; inventa a vacina e envenena o ar; viaja pelo universo e enclausura os animais e seus semelhantes em campos de concentração. Promove Francisco de Assis a santo, mas não segue a luz que ele acendeu.Enquanto expande o agro-negócio, restringe o curso das águas, abafa os gemidos da sede, cala as vozes das florestas, assim arquitetando - passo a passo e sem compaixão - a destruição da sua morada.
E quando a rota das últimas aves for fumaça; as matas, quase pó; as águas, lama, certamente quem se julgava o centro do universo há de clamar pelo Supremo Protetor, aquele que Francisco, o da pequena Assisi, chamava de Pai. Mas qual face voltará o Pai para o filho dominante? A face do protetor ou a do juiz? Ou simplesmente não ouvirá a súplica? Talvez enfim o homem perceba que, por sua vez indiferente, é o Pai que reflete a imagem do filho e a este decidiu se assemelhar.
Nosso papel é evitar que esta visão apocalíptica se consume. É lembrar aos humanos que as palavras anima, alma, animal têm a mesma raiz. Fazê-los perceber que a pele fina, o rude pêlo, a leve pluma, a áspera escama envolvem a mesma matéria humilde, sujeita à dor. Que a dor nos iguala, que dividimos a mesma casa com os que nela chegaram antes de nós. E que é por isso que somos todos, como bem soube São Francisco de Assis, todos irmãos.
Cabe a nós, protetores e ambientalistas, vencer a indiferença, o utilitarismo, a soberba da nossa espécie. Não nos enganemos: os resultados não virão como um tsunami. O homem é um bicho político e a política é a arte do possível: que o riacho em pedra dura nos sirva de exemplo. Precisamos ter a memória do elefante, o olhar agudo da coruja, a manha do gato, a diligência da abelha, a fidelidade do cão. Em certos momentos, devemos olhar do alto e silenciar como as girafas. E muitas vezes – lembram de resultados já conseguidos? - bradar com o poder vocal das baleias.

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