Ouçam nossa voz
Texto de Ana Lúcia Leão, publicado no site Tribuna Animal
Em 1182, na Itália, nascia um menino, herdeiro de
fortuna. Mais tarde, já homem, abdicou de sua riqueza e abraçou a pobreza. Mas
não a pobreza de espírito. Gozasse de sua herança, seria apenas mais um nome
perdido na História. Porém, oito séculos depois, ele foi escolhido a personalidade
do milênio. E no mundo inteiro, hoje, no 4 de outubro, é comemorado o seu dia.
Francisco de Assis tinha, além do despojamento, a
notável capacidade de atentar para o muitas vezes ignorado e captar as
mensagens daqueles que ele chamava de irmãos. Irmãos de todas as espécies: a
dos irmãos iguais e as dos irmãos diferentes. E os irmãos diferentes de
Francisco, são igualmente homenageados com ele nesta data.
Francisco de Assis abriu uma picada a golpes de
amor que nós, os protetores de animais - tantas vezes menosprezados -
insistimos nela prosseguir. É que o dom da empatia, a capacidade de se colocar
no lugar do outro, de traduzir intimamente as sensações de quem nos é diverso,
é um privilégio e um fardo. Poucos recebem esse dom e, em número menor ainda, os
que aceitam assumi-lo, porque ele tem a leveza do elefante.
Durante séculos seguimos a picada aberta por
Francisco à velocidade do jabuti. Em anos mais recentes atingimos algumas
clareiras onde repousar por breves instantes. Mas tão logo recobramos fôlego e
energia, vozes – inaudíveis para a maioria – alcançam nossos ouvidos e nos
intimam a continuar. Elas miam por respeito, elas chilreiam por liberdade, elas
mugem de pavor, ganem de dor. São vozes demais dos abatedouros pra fazermos
ressoar nas cidades; milhares de mensagens, as quais temos que divulgar,
censuradas por focinheiras nos laboratórios. São saudades inúmeras da selva que
devemos fazer ecoar para além das jaulas; é o relincho debilitado, que nos cabe
amplificar, dos que transportam carga acima das próprias forças e debaixo do
chicote.
A ausência de empatia ensurdece o humano pra
qualquer lamento que não seja o próprio. Ele se lamuria do cansaço ao final do
dia, da pensão no fim da vida; se o jumento adoece, que entoe o zurro à
distância. O cão guarda a casa; quando velho, que vá ganir em dueto com o
jumento na desvalia. O homem abre corpos na ânsia de compreender os mecanismos
da vida, mas ignora o guincho de dor da cobaia submetida à cânula e ao bisturi.
O ser humano convenientemente esquece a expressão
de simpatia das outras espécies: o roçar do pêlo do gato em suas pernas, quando
ele chorou o descarte do desemprego; o abanar da cauda do seu cão, quando os
amigos de juventude já se foram; o empurrão amigo do golfinho quando se
afogava. O animal irracionalmente ama aquele que o subestima.
O utilitarismo impede que o Rei da Natureza ouça
as vozes que lhe chegam do elo mais fraco da corrente dos desvalidos. O
chimpanzé é seu bobo da corte e fonte de riso; acabada a função circense, que
chore na jaula pelo crime não cometido. O rei se apropriou da eletricidade,
escamoteou a diferença entre a noite e o dia; dos pássaros que alardeiam o
despontar do sol, ele confisca as cores e privatiza o canto na gaiola, enquanto
reivindica para si o direito de ir e vir. Outras aves, ele amontoa na granja
sob o sol artificial de um dia perene: ali, elas envelhecem dois anos em dois
meses pra que mais depressa calem os bicos e satisfaçam o soberano na gula de
cada dia. O rei autoproclamado subverte as leis do seu reino, gerando o golpe
dos males que devastam sua criação e contaminam sua corte. Então seus escravos
conhecem o lado ainda mais impiedoso deste rei: a megaimolação, os
megasepultamentos das vítimas ainda gementes. Nega-se a ouvir os pios e mugidos
e não apreende o manifesto de revolta da natureza.
O imediatismo e a ambição, se ensurdecem o Rei da
Natureza, também o cegam: as matas, pinta de cinza; o mar, de negro; os rios,
decora com estranhíssimos objetos. Na sua ânsia de tudo alterar a seu bel
prazer - trocando as curvas naturais pelo caminho mais curto das retas - apaga
vidas, aniquila espécies, aplaina texturas ancestrais. E vai perdendo a memória
da obra original.
O animal racional compõe as sinfonias e faz
estrondar as bombas; inventa a vacina e envenena o ar; viaja pelo universo e
enclausura os animais e seus semelhantes em campos de concentração. Promove
Francisco de Assis a santo, mas não segue a luz que ele acendeu.Enquanto
expande o agro-negócio, restringe o curso das águas, abafa os gemidos da sede,
cala as vozes das florestas, assim arquitetando - passo a passo e sem compaixão
- a destruição da sua morada.
E quando a rota das últimas aves for fumaça; as
matas, quase pó; as águas, lama, certamente quem se julgava o centro do
universo há de clamar pelo Supremo Protetor, aquele que Francisco, o da pequena
Assisi, chamava de Pai. Mas qual face voltará o Pai para o filho dominante? A
face do protetor ou a do juiz? Ou simplesmente não ouvirá a súplica? Talvez
enfim o homem perceba que, por sua vez indiferente, é o Pai que reflete a
imagem do filho e a este decidiu se assemelhar.
Nosso papel é evitar que esta visão apocalíptica
se consume. É lembrar aos humanos que as palavras anima, alma, animal têm a
mesma raiz. Fazê-los perceber que a pele fina, o rude pêlo, a leve pluma, a
áspera escama envolvem a mesma matéria humilde, sujeita à dor. Que a dor nos
iguala, que dividimos a mesma casa com os que nela chegaram antes de nós. E que
é por isso que somos todos, como bem soube São Francisco de Assis, todos irmãos.
Cabe a nós, protetores e ambientalistas, vencer a
indiferença, o utilitarismo, a soberba da nossa espécie. Não nos enganemos: os
resultados não virão como um tsunami. O homem é um bicho político e a política
é a arte do possível: que o riacho em pedra dura nos sirva de exemplo.
Precisamos ter a memória do elefante, o olhar agudo da coruja, a manha do gato,
a diligência da abelha, a fidelidade do cão. Em certos momentos, devemos olhar
do alto e silenciar como as girafas. E muitas vezes – lembram de resultados já
conseguidos? - bradar com o poder vocal das baleias.
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